domingo, 25 de novembro de 2012

Episódio 3: Uma Pilha de Provas Para Corrigir

Sábado e o dia se arrastou, já eram 22 horas e 56 minutos, a televisão estava ligada num volume quase inaudível, ouvia apenas aquelas gargalhadas falsas do programa de humor. Na minha frente a caneca com o chá já quase frio e uma pilha de provas para corrigir.

Mais cedo, uma amiga havia me telefonado porque estava interessadíssima em ir ao teatro. A peça estava muito bem comentada, se tratava de um monólogo no qual a personagem é uma balzaquiana dramatizando sobre sua vida de solteira e a busca por um namorado, pois já está passando o tempo para ela. Recusei acompanhá-la, essa peça já conheço de cor e salteado, não preciso ir ao teatro para saber o script.

Além do mais, já tinha um outro compromisso. O final do período lá na faculdade está chegando, na segunda termina o prazo para entregar as notas das provas dos meus alunos e os preparativos para as últimas provas do semestre estão em curso. Como andava muito desorganizada nos últimos tempos, não havia corrigido nenhuma ainda e precisava cumprir este trabalho neste fim de semana.

O problema é que sábado à noite fica difícil se concentrar para este tipo de tarefa e parece que o mundo conspira contra. Meu olhar estava perdido, vasculhando a sala e só se fixou quando encontrou a jangadinha, feita de casca de coco, onde se pode ler “Lembrança de Guarapari”, comprada na excursão das últimas férias de verão. Isso me faz lembrar da proposta para as férias que vem chegando: Penedo. O grupinho fixo de professores, que organiza estas viagens, apareceu há duas semanas com tal proposta, a qual recusei. Simplesmente não dá! Definitivamente, não é isto que quero para minha vida.

Até me deparar com aquele souvenir, que não sei o que passou pela minha cabeça quando comprei uma coisa tão cafona, estava pensando que não é isso que quero para minha vida. Mas, afinal, o que quero mesmo? Foi o que desviou minha atenção da pilha de provas. Na quarta feira, em Ipanema, me sentia tão decidida e agora me encontro novamente confusa, sei o que quero, mas a sensação é de que o meu desejo está tão distante de mim. Acho que o que me prende, me amarra e me indefine é a inércia que devo vencer para mudar.

Na tela do computador, ligado num canto da sala, vi que piscava uma janela. Fui ver quem era. Só podia ser o Tom, meu amigo virtual de Porto Alegre. Estava me perguntando se não ia sair. Menti. Disse que estava terminando de me arrumar e só faltava colocar um salto e a maquiagem para ir a uma festa. O Tom é meio esnobe, adora contar que faz e acontece, que é articulado e não dá conta de tantos convites que recebe. Jamais confessaria a ele que havia recusado o convite para uma peça que espelha minha vida para ficar em casa corrigindo uma pilha de provas num sábado à noite.

Voltei para as provas: “A Conferencia das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas ou COP são reuniões que acontecem anualmente...”. Mas quando foi que comprei esta jangadinha? Ah, foi naquele dia que almoçamos uma moqueca Capixaba em Meaipe e depois fomos à feirinha de artesanato de Guarapari. Que excursão! Achei que estava num treinamento para a terceira idade, se bem que não, eles são bem mais animados. Nem na boate da moda quiseram ir. Todo mundo para cama cedo, pra chegar com o nascer do sol do dia seguinte na praia e passar areia preta no corpo para curar os males. Onde fui me meter!

Não foi isso que pensei para minha vida! Penedo, estou fora! Mas... o que vou fazer nas minhas férias? Nenhum plano. A verdade é que não tenho plano algum para o futuro, nem o próximo e nem para longo prazo. Sei o que quero, mas não sei ainda como vou viabilizar o meu sonho. A que se resumiu a minha vida?... Nem tudo pode ser tão ruim que não possa piorar, começou a tocar uma música alta lá fora, com certeza alguma festa. Eu que já não estou conseguindo me concentrar, tudo conspira contra, ficou ainda mais difícil de terminar esta pilha de provas para corrigir.

Pior, passei o dia todo, fez um sol como só o Rio tem, trancada em casa, rodando em torno da minha obrigação e não consegui nem começar o trabalho. Agora a música aumentou e estou escutando as vozes das pessoas animadíssimas, quanto tempo faz que não me convidam para uma festa? Nem me lembro da última que fui, deve ter sido aquele Natal na escola de dança... e consigo rir de mim mesma!

Amanhã vou jogar essa jangadinha feita de coco fora, preciso mesmo arrumar a casa. Guarapari é tão bonito! Tenho ótimas lembranças de um verão que estive lá com meus pais quando era pequena, achei que a viagem, com os professores, seria boa. De todo modo a culpa não é deles, me pareceu que se divertiram muito, o problema era comigo. Será que o Tom foi a alguma festa? Como será que ele é? Até hoje só vi uma foto dele, mas não deu para ter muita noção, quem sabe um dia a gente não se conhece.

No domingo não teve outro remédio, me obriguei a concluir a tarefa que mal consegui iniciar no dia anterior. O dia todo debruçada sobre as provas e consegui que todos os alunos tivessem suas notas. Tarefa cumprida merecia um prêmio, além das férias sem planos por vir, fui comer uma pizza num domingo a noite depois de ir, desacompanhada, como sempre, ao cinema assistir a última estreia para que meu fim de semana não fosse inteiramente passado dentro de casa.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Episódio 2: De Volta à Rotina

As aulas de ballet recomeçaram, as meninas podem continuar dançando e os deboulés* vão ditando o ritmo do mundo. Eu, como não poderia ser diferente, voltei a dar minhas aulas, mais um ano se passou, seu fim está próximo e como sempre a mesma correria. Nessa confusão que invadiu minha vida nem tinha notado que a cidade já está ficando toda iluminada e árvores decoradas surgem por toda parte.

Nem sei em qual velocidade o tempo vem se movendo, vivo como se estivesse fora do meu corpo, assistindo minha vida como expectadora, impassível, neste momento sou um fantoche. Sei para onde vou, o que devo fazer, consigo dar minhas aulas, comer, conversar, mas é como se estivesse vazia, como se meus sentimentos tivessem se esvaído. Tento sentir algo, tristeza, vontade, sabor, nada acontece, não sei o que eu quero, simplesmente vou seguindo meu curso. Se eu parasse e pensasse: “o que mais gostaria de fazer agora, se pudesse largar tudo e fazer uma coisa que quisesse muito, independentemente do que fosse, o que eu faria”?

Uma angústia de indecisão se abateria sobre mim, eu não sei o que quero, para onde estou indo e onde quero chegar. Simplesmente é impossível tomar qualquer decisão neste estado melancólico em que me encontro, então sigo fazendo o que devo fazer e cumprindo minhas obrigações da melhor forma possível, até que esse nada que se abateu sobre mim passe e tudo que quero agora e é voltar a sentir.

Sozinha em casa tento colocar a cabeça no lugar, sei que preciso fazer algo por mim, sei que este momento pelo qual passo é um período de mudanças, não dá mais para viver como sempre vivi. Essa mudança que está em curso não me levará onde quero ir por si, é preciso que eu mude, mas para isso tenho que decidir o que quero para, então, encontrar uma força interna e poder colocar em curso a minha nova vida, isso só será possível com um esforço imenso. Tudo gira em torno de mim, de minha capacidade de me transformar, de me recriar, de ser perseverante, uma luta diária contra o que sou agora, para me transfigurar numa nova pessoa, a que quero ser, a que preciso ser, desesperadamente diferente do que sou hoje. Preciso de uma nova vida. É muito difícil!

Por mais no fundo do poço que possamos parecer estar, nada é tão escuro e tão fundo que não possa se iluminar com um dia de sol do Rio de Janeiro. Quando vi aquela quarta-feira perfeita de sol, larguei tudo, procurei o biquíni na gaveta e fui, como sob efeito hipnótico, de óculo, chapéu, Havaianas e maquiagem, para a praia de Ipanema. Minhas energias começaram a voltar e trouxe consigo meus sentimentos de volta, agora já era capaz de tomar algumas decisões.

Deitada à beira mar, sentindo o calor do sol que me bronzeava, o barulho das ondas espumando bem perto e os ambulantes anunciando seus produtos com vozes distantes, abafadas pela algazarra feita pelos meus pensamentos. Então, me dei conta de que sei o quero, sei o que fazer de minha vida, disso não tenho dúvidas, a verdadeira questão é se tenho coragem para tanto. Deixar tudo que sempre fui não é fácil!

Sei que nada pode acontecer, então continuaria vivendo, até bem demais, como sempre vivi, afinal, meu desejo é uma ousadia e tanto! Mas sei que este é um momento decisivo, se não fizer com minha vida o que quero depois pode ser tarde demais, o tempo é muito cruel e antes que passe para mim, penso que é hora de viver mais intensamente. Ainda me permito um tempo para pensar e amadurecer a ideia, preciso encerrar o semestre e arcar com meus compromissos assumidos. Porém, tenho uma tarefa para minha nova vida, que surge sob este sol de Ipanema, aproveitar as festas de fim de ano e as férias que se anunciam.

  
* Significa rolar, é nome de um passo de ballet. São pequenos tours, em geral feitos em séries, em que o bailarino executa pequenas voltas, transferindo o peso do corpo de uma perna para outra.


sábado, 17 de novembro de 2012

Episódio 1: Vende-se Uma Escola de Ballet

Os dias seguem, vivo agora numa tentativa de voltar à normalidade, mas é impossível! Terei que descobrir o que é a normalidade agora, é muito duro arrumar a casa, sua presença está em tudo. O arranjo de flores que ela trouxe da floricultura murcha em cima da mesa e não tenho coragem para me desfazer dele. As roupas no armário aguardam uma nova dona, o livro de receitas está aberto na cozinha na página com as instruções para o bolo que não será mais assado, o marcador ainda indica de onde deve-se continuar a leitura do romance que nunca chegará ao final, cada cantinho da casa guarda um pouco de alguma atividade interrompida que não se completará. A sala de aula de dança está vazia, a sapatilha jogada num canto e as meninas ainda não sabem dançar toda a coreografia da apresentação do fim do ano.

Essa é a grande questão, pensar no que farei com a escola de dança, nela está contida a essência da concretização de um sonho de uma vida, fechá-la significa a interrupção definitiva assim como todo o resto que também se cessou, extinguindo de vez o sonho, o único que foi possível. Tenho muita pena de ter de fechá-la, mas eu não poderia assumi-la, o meu sonho é outro, meu trabalho é outro, apesar de fazer parte de mim, da minha história, não está no meu presente nem nos meus planos de vida. Era difícil, mas teria de fazê-lo, talvez como o encerramento de um ciclo, um rito de passagem, um marco para a nova vida, como ponte de partida para encontrar a minha essência e ir de encontro com minha existência verdadeira.

Eu queria vendê-la de porteira fechada, mas encontrar um comprador era o problema e tinha de ser rápido porque se não perderia seu maior valor, as alunas. Se isso não fosse possível a fecharia e colocaria suas dependências à venda, já tinha até uma proposta muito boa de uma construtora que quer colocar a casa no chão. De qualquer modo, precisava do dinheiro para organizar minha nova vida e por em prática a decisão que poderia transformá-la completamente, viver o sonho que sempre tive, a oferta era irrecusável!

Tive aulas de ballet naquelas salas, cresci ali dentro, ali fui muito feliz, algumas professoras são minhas amigas, quase irmãs, tantos funcionários antigos e fechar a firma, além do trabalho, me doía. Estava nesse impasse quando a solução apareceu: três das professoras, que acabariam por ficar sem emprego, me propuseram sociedade. Continuariam tocando a escola e me pagando um pró-labore até que pudessem comprar a firma. Perfeito!

O sonho não acabou, a coreografia continuaria sendo ensinada, as alunas teriam sua apresentação de fim de ano, todos continuariam em seus empregos e minha vida mais fácil com menos uma decisão a tomar. A vida precisa continuar o seu curso, afinal foi mais um dia que se passou. Ah, esse ritmo frenético do tempo que não para e não espera pela gente!

A vida passa por mudanças todos os dias, umas mais bruscas que outras, a maioria não percebemos e vão sorrateiramente transformando tudo a nossa volta, outras invadem nossa vida e a deixam de cabeça para baixo, só nos resta reagir do melhor modo que pudermos. A gente segue em frente, mas ainda ficamos presos ao passado, a quem fomos e é isso que somos.

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Episódio de Origem – Parte 3

Talvez esses pensamentos sejam só a expressão da tristeza por a ter perdido, por ter ficado só. Minha mãe teve uma vida muito boa! Sua infância foi feliz, teve liberdade de brincar numa cidade tranqüila e depois, como para completar sua formação, se mudou para uma cidade grande, numa época que as coisas eram menos difíceis por aqui. Se formou numa boa universidade e trabalhava com o que gostava. Sim, ela foi uma bailarina!

Papai era um homem de muito caráter, sempre correto e companheiro. Não sei se o amor deles foi arrebatador, mas foi uma relação tranqüila, sem sobressaltos e acima de tudo se davam muito bem. Tiveram seus desentendimentos, muitos, quem não os tem? Mas, no todo, viveram uma vida boa!

Ela pode não ter sido uma bailarina profissional, mas com toda certeza contribuiu para trazer arte e beleza para o mundo, ou pelo menos para quem estava a sua volta. Contribuiu para a educação daquelas meninas e para a formação de seus sonhos. Sempre foi muito talentosa, não só para a dança, mas em tudo a que se propunha a fazer. Lembro-me que as festas de Natal aqui em casa sempre foram muito acolhedoras, mas a família era pequena e ela tinha um desejo de fazer uma grande festa. Então, quando eu já estava um pouco crescida, ia entrar na adolescência, fez a Grande Festa Natalina na Escola de Dança. A festa parecia saída de um conto de Natal, vieram muitas famílias das alunas, seus pais, irmãos, tios, primos, avós e todos que puderam vir. Minha mãe montou uma coreografia encenando o nascimento do menino Jesus, a festa foi completa e por muitos anos ainda se falava nela. Foi realmente memorável!

Acho que esta festa foi o marco do final da minha infância, depois vieram os conflitos da adolescência, quando começamos a perder a paz, a inocência infantil, o descompromisso com a vida e começamos a crescer, nos tornar adultos e passamos a sonhar menos, quando entramos nessa vida levada pelos dias.

Pois agora, nos próximos dias devo passar por uma nova transformação, daqui para frente minha vida será totalmente diferente do que sempre foi. Esse acontecimento é daqueles que transformam nossa vida para sempre, não tem mais como voltar atrás. Agora estou só e de certo modo minha vida apenas me pertence e o que fizer dela implicará na construção de um novo caráter.

Trazemos aderido aos nossos valores o aprendizado com nossos pais, os princípios que eles conseguiram nos ensinar, o modo como viam a vida, suas noções de certo e errado. De alguma forma nossos atos são realizados sob a visão de um observador implacável, por mais que sejamos senhores de nossas vidas, em tudo que fazemos, conscientes ou não, consideramos o que nossos pais pensariam a respeito, como se fossem observadores constante de nossos atos. Uma vez sozinhos, sem suas presenças físicas, de algum modo estamos livres para fazermos diferente. Aqueles que poderiam nos criticar não estão mais aqui, mesmo que carreguemos para todo sempre os valores ensinados que ficam entranhados na alma, formando a essência de quem somos, achamos que agora podemos seguir por novos caminhos, traçando nosso próprio destino.

Penso nisso tudo, porque se minha vida será diferente agora, talvez consiga ter algum controle sobre isso e escolher o que quero de agora em diante sem ter que prestar contas tão rigorosas a observadores tão exigentes, que na maior parte do tempo não são tão exigentes assim e estão mesmo aqui para nos apoiar. Mas, talvez, agora consiga fazer dela um pouco do que gostaria que fosse, me arriscar mais sem ter que ouvir aquele eterno conselho para ter juízo. Liberdade? Não estou, de modo algum, apreciando estar só ou a morte ter chegado a quem tanto amei, não... que amo no presente, o amor continua... Não estou gostando dessa solidão tão recente, se digo que posso ser diferente, se penso que não serei mais julgada por quem tanto tive medo de ser condenada é porque quero arriscar, experimentar ser diferente para viver a minha vida de verdade. Não culpo ninguém a não ser a mim, não tem nada haver com meus pais e sim comigo mesma, com a busca de quem sou e do que realmente quero.

No entanto, é muito difícil. Difícil não só viver de verdade, mas não ter mais o porto seguro, o carinho, o colo, o ponto de equilíbrio, a pessoa que se pode contar acima de tudo, que estará do seu lado independentemente do seu caráter, que te julgará, mas não te abandonará; seguirá ao seu lado para que não esteja só nas dificuldades e com quem partilhará as conquistas, a felicidade e o passar dos dias, independentemente do que escolha ser.

Pois aqui estou, não sei o que será de mim, se o futuro já é incerto, o meu está ainda mais nebuloso, pois quero ir em busca da minha vida, a de verdade, não sei até onde chegarei, mas compartilharei aqui a minha busca, registrarei o porvir. O que será que me espera?