quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Episódio de Origem – Parte 2

Fiquei pensando em tudo enquanto me despedia de minha mãe, Ivete Dias, ou como carinhosamente a chamávamos Ivy. Lembrei-me da Alicia que fui quando criança, vestida com meu primeiro tutu de ballet aprendendo a ser cisne, mamãe corrigindo meus passos e ensinando a delicadeza dos movimentos das mãos. Eu nunca fui bailarina, tentava, mas não podia ser porque não dançava com a alma, queria, pelo menos, dançar com o corpo, mas sem a alma junto o corpo não consegue.

Minha mãe não, ela sim era uma bailarina, na alma. Na vida que vivia era simplesmente tia Ivy, a professora de ballet da escolinha daqui do bairro que tentava despertar nas meninas um dom que nela havia ficado aprisionado sem nunca ter tido a oportunidade de ganhar vida.

Ivete foi criança numa cidade do interior do estado, lá levava uma vida muito boa, mas as oportunidades eram escassas. Foi lá que descobriu a dança numa escolinha pequena de interior, um passatempo para as meninas das famílias mais destacadas da cidade. Foi lá que começou a traçar os planos de sua vida, esboçar a certeza de que seu futuro seria nos palcos, dividido com seu partner num dueto do Pas de Deux, dançando o amor de uma obra de Tchaikovsky.

Pouco antes de completar seus 17 anos seu pai foi transferido para o Rio de Janeiro, mas já era tarde. Foi quando mamãe se conscientizou de que sua escola de dança era apenas uma escolinha numa cidade de interior que não formava bailarinas e para ela já era tarde. Não aprendera ballet o suficiente para dançar o seu Pas de Deux e aquela altura de sua vida já não havia mais tempo de recomeçar, pois o tempo de iniciar a ser bailarina profissional já havia passado.

O que aconteceu depois não importa: ela fez faculdade de dança e abriu a escolinha onde havia aulas para amadores, mas fez questão de que tivesse classes profissionalizantes para ter o cuidado de não frustrar os sonhos de ninguém. Foi isso que fez a sua vida toda. O seu verdadeiro Pas de Deux foi com o meu pai que sempre a acompanhava ao teatro, mas na platéia quando vinha uma companhia russa se apresentar no Municipal. Os cisnes voavam nos palcos enquanto a alma de minha mãe estava aprisionada para sempre.

Era nisso que pensava hoje quando me despedia dela. Não teve um motivo para minha mãe não ter dançado nos palcos, não foi porque ela não nasceu na cidade grande, não foi porque não estudou numa boa escola, não foi porque não era russa, não foi porque não se dedicou, não lhe faltou paixão, não faltou o sonho, os projetos, não faltou vontade, não faltou disciplina, não faltou o dom...

O que explica então? Foram o passar dos dias, a ocupação com as coisas mais imediatas, aquelas que devem ser feitas agora, a vida que a gente leva. O sonho, o desejo acaba sendo um projeto para o futuro não tem nada haver com o hoje, com o que estamos fazendo agora, pensamos que só vamos vivê-lo no futuro e quando o futuro chegar eles serão realizados. Mas não é assim, temos que nos preparar para quando esse futuro chegar, se não nunca estaremos prontos e no futuro, quando ele for presente, já será tarde, veremos que passou por nós sem nos darmos conta, então quando percebermos já será passado. Foi isso que aconteceu, a gente pensa que as coisas se arranjarão, que a história de nossa vida será completa. Pois não será.

Nunca é completa, nunca é o suficiente, nunca estaremos em paz, nunca chegaremos a lugar algum, nunca nos completaremos, se não deixa de ser vida, perde o sentido e não há um lugar a se chegar. Existe somente o hoje, o que estamos fazendo agora, cada vez nos sobra menos tempo para repetir o agora e o que eu quero agora? Não interessa o que eu quero no futuro, o que importa é o que quero agora, não vou começar minha vida no futuro, estou vivendo é o agora e é tudo que tenho. Se não começar neste instante e não tiver disciplina todos os dias para viver plenamente, ou ao menos tentar, serei levada pelos dias e mais um virá, seguido do outro, mais um ano, mais ocupações, mais o passar do tempo até que um dia chegue ao fim. Chegou para minha mãe.

E se o meu fim chegasse agora? Poderia dizer que tive uma vida ou que apenas vivi uma seqüência de dias sucessivos, um depois do outro que somados formam a vida que levei, ou foi ela que me levou sem nunca eu ter conhecido minha essência?

domingo, 28 de outubro de 2012

Episódio de Origem – Parte 1

Estou só, agora é concreto. Já era só antes e agora definitivamente. O que me resta? Escrever?

Sempre tive esta vontade, de ser escritora, mas isso toma tempo e é necessária muita dedicação, mais transpiração do que inspiração. Sim, é preciso ter o dom, mas sem a disciplina as páginas em branco não são preenchidas.

É claro que escrevo, meu nome é Alicia Dias e tenho 34 anos, sou professora de Relações Internacionais numa faculdade e minha carreira em si exige que escreva. Não me contento em apenas cumprir minha carga horária, gosto de minha profissão, gosto do meu trabalho, por isso faço pesquisa e publico muito. Tenho até dois livros escritos e publicados.

Mas não é disso que estou falando. Queria escrever à alma das pessoas, palavras que quem lesse se sentisse tocado, que inspirasse, quem sabe romances, ou tragédias. Por que não um drama? Talvez virasse roteiro de um filme e eu até tivesse uma noite de autógrafos, desejar é possível, o difícil é concretizar. As vezes me pego pensando nas histórias que vivem dentro de mim. Sim, tenho-as prontas, só preciso da transpiração e disciplina na frente do computador, mas depois desanimo. Também penso que o mais difícil seria encontrar quem as lesse. Histórias sem leitores são como histórias não escritas, elas não existem, não ganham vida, são como se ainda apenas existissem dentro de nossa mente.

Tenho que me decidir, então resolvi agora experimentar. A vida é muito curta, a gente se envolve nos problemas e questões do dia a dia e o resto, o que é importante, o que faz a vida valer a pena, acaba ficando de lado, para depois, então um dia a gente se dá conta de que a vida passou e nos perguntamos: o que fizemos? Fazemos uma retrospectiva dos planos que tivemos para nós mesmos, do que sonhamos viver e descobrimos que tudo foi levado pela dinâmica dos dias, do passar dos dias, das tarefas a serem feitas, dos compromissos, das relações sociais, das obrigações, dos estudos, do trabalho, mas afinal isso é a vida: o fluxo interminável dos dias, um depois do outro. Mas e os sonhos? Os de verdade, os nossos desejos mais profundos, aquela vontade de auto-realização, de se sentir gente, de fazer alguma coisa e no final ter a sensação de que a vida realmente valeu. De dizer: sim é para isso que vivemos! De realizar e se sentir plenos, mesmo que no dia seguinte passe e nos vemos de novo envoltos na rotina dos dias buscando novamente a plenitude.

Não, não vivemos, não fizemos nada disso, não deu tempo porque estávamos ocupados demais levando a vida, fazendo todas as outras coisas que fazemos, que tivemos que fazer e por isso não deu tempo de ter a vida que valesse, nossa vida para valer e quando descobrimos já é tarde, ou não. Não sei.

Isso é só uma inquietação minha. Não sei se todas as pessoas são assim, pensam deste modo, que acreditam nesse fluxo da vida, que vai nos levando: nós trabalhamos, temos férias, cumprimos nossas obrigações, criamos nossos filhos, comemoramos os aniversários, mais um ano passa, trocamos presentes no Natal, celebramos a virada de mais um ano, vem um novo e sonhamos com os novos planos, o que de novo podemos fazer, ou com os velhos não realizados, os projetos para a nova vida que acreditamos estar começando e, então, vivemos mais um ano, um depois do outro. As pessoas são assim, muitas delas, e a vida é isso. Mas para mim não é assim, não consigo que seja assim, penso somente que estou ocupada com todas essas coisas e que minha vida, a de verdade, a que deveria ser, ficou de lado, esperando que eu tenha tempo para vivê-la, para fazer minhas realizações, tudo que foi planejado. Mas quando terei tempo, se mais um ano vem e com eles as obrigações, o trabalho a realizar, as contas para pagar, as compras à fazer, a festa do Natal para preparar e estourar os fogos da virada? Não dá tempo!

Escrever está nessa dimensão da vida, na que eu não consigo viver, na que não tenho tempo, na que sinto que vai me engrandecer e me fazer pensar que a vida valeu a pena. Por isso me dou conta que preciso me expressar, portanto agora decido que darei vida ao que tenho a escrever e conseguindo que pelo menos uma pessoa leia, quem sabe um amigo bem próximo, não sei, mas o primeiro passo é escrever. Isso só depende de mim.

O difícil é olhar a folha em branco e pensar no tanto de trabalho pela frente, mas será um trabalho com prazer, que vai me preencher, me engrandecer e fazer a vida valer realmente a pena. Será a minha vida de verdade. As histórias já vivem dentro de mim, preciso dar-lhes vida, deixá-las seguir seu curso e entregá-las ao mundo, o seu destino. Seja lá qual ele for.

Quando penso nisso tudo, que vivo de fora da vida que queria para mim, da vida que deveria ser a minha, aquela em que os meus sonhos e projetos são executados, aqueles que pelo qual realmente vale uma vida, que vale viver, acredito que não sou eu que estou aqui vivendo os meus dias e sim uma personagem qualquer que estou representando. Essa que acorda todo dia e anda por aí cumprindo as obrigações não sou eu, não é a alma que mora em mim, ela está adormecida esperando a hora em que vou parar de atuar, de representar numa vida que não é a minha de verdade para acordar e começar a viver.

Foi por isso que decidi começar a escrever por esta estória, a dessa personagem que venho representando por tanto tempo. É com ela que começarei a escrever, para me libertar dessa vida falsa. Uma vez iniciado o trabalho de escrever sinto que entrarei na minha vida de verdade, darei ao mundo, libertarei essa personagem representada e poderei recuperar quem realmente sou, a verdadeira eu e viver a minha história. Como a personagem está aqui, vivendo o fluxo dos dias, nos acontecimentos reais nada mais próprio que este blog que também é fluído e segue como a corrente dos dias.

Isso tudo me ocorreu hoje porque acabo de voltar do enterro de minha mãe... Me dei conta do quanto a vida pode ser frágil, curta e que a minha pode chegar ao fim um dia. E vai chegar, não sei quando será e não vou ter tido tempo de viver o que realmente sou. É preciso, portanto, vivê-lo, ou tentar pelo menos despertar o que realmente sou. Preciso começar...