Fiquei pensando em tudo enquanto me despedia de minha mãe, Ivete Dias, ou como carinhosamente a chamávamos Ivy. Lembrei-me da Alicia que fui quando criança, vestida com meu primeiro tutu de ballet aprendendo a ser cisne, mamãe corrigindo meus passos e ensinando a delicadeza dos movimentos das mãos. Eu nunca fui bailarina, tentava, mas não podia ser porque não dançava com a alma, queria, pelo menos, dançar com o corpo, mas sem a alma junto o corpo não consegue.
Minha mãe não, ela sim era uma bailarina, na alma. Na vida que vivia era simplesmente tia Ivy, a professora de ballet da escolinha daqui do bairro que tentava despertar nas meninas um dom que nela havia ficado aprisionado sem nunca ter tido a oportunidade de ganhar vida.
Ivete foi criança numa cidade do interior do estado, lá levava uma vida muito boa, mas as oportunidades eram escassas. Foi lá que descobriu a dança numa escolinha pequena de interior, um passatempo para as meninas das famílias mais destacadas da cidade. Foi lá que começou a traçar os planos de sua vida, esboçar a certeza de que seu futuro seria nos palcos, dividido com seu partner num dueto do Pas de Deux, dançando o amor de uma obra de Tchaikovsky.
Pouco antes de completar seus 17 anos seu pai foi transferido para o Rio de Janeiro, mas já era tarde. Foi quando mamãe se conscientizou de que sua escola de dança era apenas uma escolinha numa cidade de interior que não formava bailarinas e para ela já era tarde. Não aprendera ballet o suficiente para dançar o seu Pas de Deux e aquela altura de sua vida já não havia mais tempo de recomeçar, pois o tempo de iniciar a ser bailarina profissional já havia passado.
O que aconteceu depois não importa: ela fez faculdade de dança e abriu a escolinha onde havia aulas para amadores, mas fez questão de que tivesse classes profissionalizantes para ter o cuidado de não frustrar os sonhos de ninguém. Foi isso que fez a sua vida toda. O seu verdadeiro Pas de Deux foi com o meu pai que sempre a acompanhava ao teatro, mas na platéia quando vinha uma companhia russa se apresentar no Municipal. Os cisnes voavam nos palcos enquanto a alma de minha mãe estava aprisionada para sempre.
Era nisso que pensava hoje quando me despedia dela. Não teve um motivo para minha mãe não ter dançado nos palcos, não foi porque ela não nasceu na cidade grande, não foi porque não estudou numa boa escola, não foi porque não era russa, não foi porque não se dedicou, não lhe faltou paixão, não faltou o sonho, os projetos, não faltou vontade, não faltou disciplina, não faltou o dom...
O que explica então? Foram o passar dos dias, a ocupação com as coisas mais imediatas, aquelas que devem ser feitas agora, a vida que a gente leva. O sonho, o desejo acaba sendo um projeto para o futuro não tem nada haver com o hoje, com o que estamos fazendo agora, pensamos que só vamos vivê-lo no futuro e quando o futuro chegar eles serão realizados. Mas não é assim, temos que nos preparar para quando esse futuro chegar, se não nunca estaremos prontos e no futuro, quando ele for presente, já será tarde, veremos que passou por nós sem nos darmos conta, então quando percebermos já será passado. Foi isso que aconteceu, a gente pensa que as coisas se arranjarão, que a história de nossa vida será completa. Pois não será.
Nunca é completa, nunca é o suficiente, nunca estaremos em paz, nunca chegaremos a lugar algum, nunca nos completaremos, se não deixa de ser vida, perde o sentido e não há um lugar a se chegar. Existe somente o hoje, o que estamos fazendo agora, cada vez nos sobra menos tempo para repetir o agora e o que eu quero agora? Não interessa o que eu quero no futuro, o que importa é o que quero agora, não vou começar minha vida no futuro, estou vivendo é o agora e é tudo que tenho. Se não começar neste instante e não tiver disciplina todos os dias para viver plenamente, ou ao menos tentar, serei levada pelos dias e mais um virá, seguido do outro, mais um ano, mais ocupações, mais o passar do tempo até que um dia chegue ao fim. Chegou para minha mãe.
E se o meu fim chegasse agora? Poderia dizer que tive uma vida ou que apenas vivi uma seqüência de dias sucessivos, um depois do outro que somados formam a vida que levei, ou foi ela que me levou sem nunca eu ter conhecido minha essência?